Cortar, lixar, esculpir, montar. É cada vez maior o número de pessoas que procura cursos de marcenaria. Para muitos, a atividade vai além de um hobby: é terapia, ofício e vocação.
A rotina de boa parte dos profissionais modernos resume-se a horas a fio com os olhos pregados na tela do computador, além de ter de acompanhar, a todo instante, as notificações incessantes no celular. Não à toa, muitas pessoas têm buscado nas artes manuais um antídoto contra o estresse do dia a dia provocado pelas crescentes obrigações da vida corporativa e digital. A marcenaria é uma dessas atividades.
A demanda tem sido suprida por várias escolas de marcenaria artesanal, que oferecem cursos com duração e focos variados. Em muitos casos, o que começa como um hobby acaba se tornando parte importante da vida de quem acredita que poucas coisas são mais satisfatórias que pensar em um projeto e executá-lo do começo ao fim com as próprias mãos. Conheça a seguir pessoas que se dedicam à prática e ao ensino desse belo ofício.
Pioneirismo e paixão
A marcenaria surgiu na vida de Piero Calò ainda na adolescência. Ele aprendeu o ofício aos 17 anos, como aprendiz na oficina de Mauro Calabi, artesão que estudou na Itália e teve papel importante na formação de muitos marceneiros brasileiros. Algum tempo depois, a marcenaria foi a resposta para satisfazer a veia artística do estudante de Artes Plásticas e exercitar o pragmatismo de quem também estudou Administração de Empresas. “Foi uma forma de juntar a área artística com a prática”, diz.
Assim nasceu a marcenaria Cose di Legno, em 1980, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. O prazer do trabalho, no entanto, foi afetado pela turbulência de sucessivos planos econômicos malfadados e por uma hiperinflação que corroía os negócios e ameaçava o futuro de pequenos empreendimentos, como o de Piero. “A marcenaria já existia havia cerca de 10 anos, resistiu aos governos Collor e Sarney, mas a situação estava muito difícil. Chegou a um ponto em que decidi vender tudo e fazer outra coisa”, relembra. O plano era começar a trabalhar com pedras brasileiras, fazer joias, mas a ideia de fechar a marcenaria o entristecia. Ele resolveu então abrir o espaço à noite para dar aulas. Por um ano, a Cose di Legno funcionou como marcenaria durante o dia e escola à noite. A ideia deu tão certo que desde 1990 o espaço tornou-se exclusivo para aulas.
A Cose di Legno é uma das escolas pioneiras em São Paulo. As aulas vão além de ensinar a desenhar e produzir um móvel. Segundo Piero, para trabalhar bem é preciso entender a parte biológica da matéria-prima, saber identificar veios e fibras da madeira para comprar o material adequado e montar o móvel de maneira correta. É por isso que lá todos os alunos aprendem um pouco da disciplina batizada de Teoria da Madeira. “Sempre achei importante ensinar a Teoria da Madeira. Posso dizer que o pessoal sai daqui com uma boa base.”
Segundo Piero, a esmagadora maioria (praticamente 99%) dos alunos que chegam à escola buscam a marcenaria como um hobby, uma forma de relaxar. “Há profissionais de todas as áreas: médicos, profissionais de TI, advogados, engenheiros”, diz. “E também aqueles que querem efetivamente abrir uma empresa ou vêm para se especializar em uma determinada técnica, mas são a minoria.”

Slow Wood
Inspirado pelo movimento Slow Food, nascido na Itália em meados da década de 1980, que defende o acesso ao alimento bom, limpo e justo para todos, Piero resolveu criar seu próprio manifesto nos anos 1990, o Slow Wood. Nele, chama a atenção para o impacto ambiental da extração desenfreada da madeira, o desaparecimento dos artesãos e a necessidade de produzir peças de qualidade, para que durem mais e possam ser reaproveitadas. O móvel ideal, segundo ele, é de madeira maciça de lei, que é de crescimento muito lento e exige mais habilidade do marceneiro. cosedilegno.com.br

Faça você mesmo
É comum chegarem à oficinalab pessoas que nunca manusearam serras e lixas, entre outras ferramentas, e que saem de lá algumas aulas depois carregando um objeto de madeira novinho em folha feito por elas. O papel da escola de marcenaria fundada pelos arquitetos Alex Uzueli e Daniel Sene é este mesmo: incentivar os alunos a fazer.
Antes da oficinalab, Alex e Daniel eram sócios da Labmob – rebatizada de LAB74, que, além de oficinas de marcenaria, hoje oferece aulas de joalheria, costura e até coquetelaria.
Instalada na Barra Funda, em São Paulo, a oficinalab funciona também como coworking e aluga espaço para alunos e ex-alunos que desejam tocar projetos especiais, independentemente das aulas. “A escola foi pensada para receber pessoas criativas de todas as áreas, com ou sem experiência em marcenaria. Nós ajudamos o aluno a desenvolver e executar o projeto”, revela Alex, professor há 5 anos.
A oficinalab oferece desde cursos rápidos até módulos que duram vários meses, voltados à execução de projetos mais complexos. “Gosto de pensar na escola como um espaço para as pessoas se reencontrarem com o fazer”, diz Alex. “Nós nos distanciamos de processos muito naturais, como construir e criar. Por isso, considero o ato de produzir algo profundamente transformador.”
oficinalab.com.br

De aluna a professora
A marcenaria surgiu na vida da dentista Elke Noda em um momento pessoal e profissional difícil. Ela havia acabado de voltar a São Paulo, depois de viver por alguns anos em Santa Catarina. Resolveu fazer o curso da Labmob, com o objetivo de aprender o máximo possível. “Sempre gostei de trabalhos manuais, mas achava que mexer com madeira era muito difícil, inacessível.”
Essa primeira impressão não a impediu de chegar à escola com uma proposta ousada para quem nunca tinha trabalhado com madeira: uma estante de cerca de 70 cm de largura por 1,80 m de altura, com porta e gaveta. Para tornar a tarefa ainda mais desafiadora, parte do móvel era de madeira maciça, material mais difícil de trabalhar. Após quatro meses de muita dedicação, a estante estava pronta para ir para casa.
Desde então, ela não parou mais. O projeto seguinte, uma prancha de stand-up paddle, foi feita na marcenaria de um amigo de seu irmão.

O Oficina de colher
Hoje, Elke fabrica e comercializa uma linha de peças de madeira em sua loja online composta de colheres, pra – tos para bolo e porta-copos e criou uma linha de tábuas para o restaurante Maní, da chef Helena Rizzo. A ideia de ensinar a esculpir colheres surgiu da vontade de fazer coisas novas, que ela não encontrava por aqui, e da falta de oficinas específicas. “Comecei a esculpir colheres sozinha, com ferramentas erradas, sem muita técnica.” Em uma viagem a São Francisco, na Califórnia (EUA), boa parte das férias foi dedicada a um workshop de colher. O curso ajudou Elke a refinar a técnica e a inspirou a montar sua própria oficina. Mesmo quem nunca trabalhou com madeira sai da oficina com uma colher prontinha. Na hora do lanche, há sem – pre um quitute preparado pela professora. “Quando me aposentar, daqui a uns sete anos, pretendo ter um ateliê pequeno com um café anexo. Não será uma cafeteria, mas um lugar para as pessoas irem conhecer meu trabalho e tomarem um café.”
studioelkenoda@gmail.com
Mais que um hobby
Fazer coisas era uma das brincadeiras favoritas da arquiteta Paula Bartorelli na infância. “Meu pai sem – pre me deixou mexer na caixa de ferramentas, usar serra, prego, essas coisas”, conta. A faculdade de Arquitetura ajudou a aprimorar as habilidades e o gosto por construir peças para a casa. “Quando precisava de um móvel para a cozinha, comprava madeira, cortava e fazia. Não tinha técnica nenhuma, era tudo na raça.”
Quando soube do curso de marcenaria na oficinalab, as coisas estavam meio paradas no escritório de arquite – tura BM Estúdio, que Paula fundou em parceria com o arquiteto e designer Fabio Mendes. “Resolvi aprender um pouco de técnica, já que fazia tudo muito intuitivamente”. Desde o primeiro curso, há dois anos, ela não parou mais de criar e fazer objetos de madeira.
As primeiras peças foram criados -mudos de madeira maciça inspirados no móvel de um amigo da família. “Foi uma escolha ousada como primeira peça. Es – colhi usar madeira maciça, material que muda conforme a umidade, expande, tem movimento. Madeira é algo vivo, e tudo o que poderia dar errado deu… en – tão aprendi bastante”, conta, rindo.
Pouco a pouco, o hobby acabou se transformando na linha de objetos BM Estúdio, composta de luminárias, poltronas e estantes, vendidos na loja online Boobam. Peças mais populares, como a estante Trinca, carro-chefe do estúdio, foram idealizadas por Paula, mas têm a produção terceirizada por serem mais complexas. O restante é produzido por ela, uma das marceneiras residentes da oficinalab. “Hoje produzo muito mais do que achei que poderia. Fui melhorando a técnica e a velocidade do trabalho.”
bmestudio.com.br
Texto Cíntia Bertolino | Fotos Mário Águas